Ana e a Lição dos Gatos

A noite surgiu tão insólita quanto possível. Uma ligação do antigo amante com quem não falava desde a única briga que o casal tivera e que terminara por encerrar o caso. Foi uma curta e objetiva ligação, marcando a hora do encontro no mesmo bar da Lapa. Ela foi rápida, chegou a casa, vestiu uma calça e blusa pretas, um tênis vermelho e sua jaqueta de veludo marrom. A noite estava fria, era um inverno inesperadamente congelante. Ana - que adorava o frio, não pensou em nada antes de aceitar o convite, não por ter sido feito pelo antigo amante, aceitaria qualquer convite naquela noite, só pensava na rua e em seus transeuntes. Tomou uma dose de gin e saiu de casa ainda no crepuscular.

Seguiu ladeira abaixo por Santa Teresa observando atentamente os gatos, estavam todos circulando por telhados e becos escuros. Em um beco próximo à sua rua uma velha alimentava os animais, levava para eles ração e água. Naquele beco, que beira uma vegetação rasa, se se olha bem atentamente no escuro, percebe-se os tantos pares de olhos que observam, são os gatos, mais atentos que homens. Ana observava-os como quem pretendia aprender lição, sabia que este era um comportamento adequado, prudente.

Encontrou-se com o antigo amante no bar em que combinara, numa esquina da Joaquim Silva, tomaram duas cervejas e depois foram para a escadaria procurando o que havia de melhor para se fumar. Entre cineastas iniciantes, atrizes de outros estados, Ana conhecera degenerados obcecados, alcoólatras embriagados, loucos viciados. O fluxo intenso de pessoas a excitava de maneira estranha. Entre a partilha de drogas e idéias, as brigas e as trapaças pareciam alimentar aquelas pessoas.

Por volta da madrugada o antigo amante, agora apenas amigo, já desistira de continuar a acompanha-la, fora embora. Entretanto a noite para ela não acabaria antes do amanhecer, e resistindo ao seu fim, juntou-se a um grupo frenético. No mesmo momento em que se despedia da companhia que ia embora, misturou-se a outro grupo, que pela manha levou consigo para casa onde ficaram até alta tarde terminando de consumir as poeiras restantes nos bolsos fundos.

Foi dormir no iniciar da noite seguinte, depois de mais uma dose de gin e um imenso cigarro de maconha para tentar acalmar as palpitações do coração. Estava nervosa, muita coisa acontecera, nada grave, mas sentia que havia mergulhado numa mar revoltoso de pessoas e acontecimentos. Foi em busca do sono, precisava dormir e sonhar com tudo que vira, estava satisfeita, afinal. Assim dormira em paz. Assim dormira em paz consigo e com os homens, tendo a sensação de que pegara mais uma parte do seu quinhão da vida.


Continua em: "O sonho de Ana"

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