Eu já havia desistido da palavra amor quando ela voltou cheia de razão para meu vocabulário. E não me refiro ao retorno do sentimento – que sempre esteve comigo, estou falando do uso da palavra para expressar o carrego no peito. É difícil escolher o significante certo para o signo. Eu havia desistido de “amor”, desacreditado na palavra, quando ela voltou límpida e sóbria para mim, carregando as experiências mais bonitas que já vivi. Estão todas lá, embutidas na palavra, o carinho no namorado num momento de perda, o abraço da amiga num encontro depois de anos de saudade, o gesto compadecido a um estranho que apenas sorriu! O amor vem carregando coisas lindas e eu quase abandono a palavra... que bom que a reencontrei. Agora não hesitarei mais em usa-la: amor, pois que é palavra essencial!


Amor — pois que é palavra essencial

Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e tudo a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
Reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma a expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
Fundido, dissolvido, volta à origem
Dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o clímax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
Carlos Drummond de Andrade

Sentiam que o cheiro não era habitual, havia algo na atmosfera que alterava as coisas dentro do quarto onde as palavras deles circulavam em um balé de memórias de um caso que ficara apenas suspenso, sem terminar. Havia substância diferente em ambos, o tempo tomara o vento em resposta e os cheiros dos corpos os levavam a reaprender lentamente como possuir um ao outro. O encontro das bocas tinha certo gosto de timidez e vontade, as mãos tentavam encontrar seu lugar, mas em nenhum espaço cabiam melhor do que um no outro, sentiram como espasmos o que ainda guardavam nos corações, sim, eles ainda queriam se amar.

A aranha e a estudante de antropologia


A aranha olha a estudante com seus olhos e pernas longas. Caminha numa esquisita elegância pelos livros da prateleira até alcançar o calendário lunar pregado na parede, cola uma parte de seu fio e salta em direção a outro livro. Encontra uma lata, um porta-retratos. Alcança a mão francesa e salta de novo em direção ao recorte ao lado. Ela é veloz, atravessa as coisas com seu jeito de se locomover, e ao capturar a atenção da estudante – entre a fumaça do incenso e dos cigarros – faz-lhe ver ao redor sua mutação, tirando das coisas seus significados. Um mundo naquele quarto: de livros, de objetos, de porta-retratos. O calendário marcado pelos dias já passados: aniversários, reuniões, aulas e seminários, protestos, menstruações, pizza, uma homenagem ao professor falecido no semestre passado. Ela vê a aranha tecendo uma transparente teia entre seus objetos, vê sua trilha entre a foto onde está toda a família e a antiga lata onde guarda seus remédios. É complexa a sequência dos movimentos de tecer dessa aranha, que liga distâncias, desejos, planos, madrugadas de sonhos estranhos. À imagem do índio assustado ela liga o livro que fala sobre a dominação do macho, à lembrança dos parafusos sendo pregados ela liga a forma como os livros foram ali arrumados. Pela disposição das coisas ela vai criando uma invisível teia de significados. A aranha que trabalha pelo seu alimento futuro e a estudante que não se cansa de encontrar os infinitos sentidos tecidos por aquele rastro.
"Apenas a lembrança do beijo do homem ao acordar bastou para que ela se visse mergulhada em desejo, trabalhando com os próprios dedos à procura de prazer. Sozinha na cama, foi livrando-se lentamente das poucas peças de roupa. A pele vibrando em eletricidade exaltada remexia-se entre lençóis a procura do outro corpo que não estava mais ali. E no mergulho em si arrancou de si prazer como quem arranca lá do fundo a própria alma. Então, estendida, sozinha e nua, com os dedos pingando de porra e o dente cravado no lábio, ela pensou no que um beijo, ainda que em lembrança, pode causar a um coração apaixonado".

retrato de um rapaz

Veja vocês o retrato deste rapaz: um dia, enquanto caminhávamos a comer, em um soluço, ele virou-se para trás e, sem dizer nada, disparou a correr.
Não entendi direito o que sucedia, mas era algo que ele esquecera no comércio de Dona Maria.
Pôs-se tão instantaneamente a correr que a comida de sua mão esburrava, enquanto ele movia-se agilmente em direção à barraquinha que lá no final da rua estava.
De longe eu observei e vi que se tratava de algo ficara perdido, algo que ele reencontrara e que sorrindo trazia de volta consigo.
Voltou caminhando aliviado
- demarcando em cada passo seu espaço -
Com um cachorro-quente despedaçado pela frente e seus preciosos discos do Cólera autografados em baixo do braço.