“É a noite, são as ondas deste mar e os roucos sussurros de Janis cantando Summertime”, me dizia ela, mas eu precisava lhe dizer que não, querida, é mais que isso que traz para nós esse poder mágico. Somos tão diferentes, entretanto somos cúmplices desta noite consagrada. Somos nós que trazemos para as ondas que quebram na areia fina desta praia este brilho sedutor, são nossas vozes combinadas que fazem essa melodia ser tão agradável, é o que compartilhamos que nos tornaram eternas na madrugada passada, não foi a música nem o frio que fizeram daquele carro o melhor lugar para se estar naquele instante. Não foi o doce prazer do paladar que nos satisfez, mas todas em volta da mesa, na maior das liberdades atingidas, a de nos desfrutar, uma da presença da outra, estávamos vivendo queridas, estávamos exercendo o milagre de existir. É a beleza de cada peculiaridade combinada com a condição que compartilhamos, e não tente, doce menina, medir qual de nós aguçamos mais essa condição, ser mulher nunca vai ser miscível, mesmo porque como disse a outra gota deste vinho, essa condição não possui parâmetro. Nós soubemos viver amores, somos o corpo de um fino vinho, nós nos vivemos nesta noite entorpecedora. Não vivemos o paladar nem a audição nem a visão, vivemos algo muito mais sublime, vivemos nesta noite nossa condição de mulher, compartilhada num êxtase que nunca mais viverão em outro lugar se não naquele tempo e espaço da noite passada.

Onde queres revólver sou coqueiro, onde queres dinheiro sou paixão.
Onde queres descanso sou desejo, e onde sou só desejo queres não.
E onde não queres nada, nada falta, e onde voas bem alta eu sou o chão.
E onde pisas no chão minha alma salta, e ganha liberdade na amplidão.
Onde queres família sou maluco, e onde queres romântico, burguês.
Onde queres Leblon sou Pernambuco, e onde queres eunuco, garanhão.
E onde queres o sim e o não, talvez, onde vês eu não vislumbro razão.
Onde queres o lobo eu sou o irmão, e onde queres cowboy eu sou chinês.
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor.
Onde queres o ato eu sou o espírito, e onde queres ternura eu sou tesão.
Onde queres o livre decassílabo, e onde buscas o anjo eu sou mulher.
Onde queres prazer sou o que dói, e onde queres tortura, mansidão.
Onde queres o lar, revolução, e onde queres bandido eu sou o herói.
Eu queria querer-te e amar o amor, construírmos dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação, tudo métrica e rima e nunca dor.
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o amor me armou.
E te quero e não queres como sou, não te quero e não queres como és.
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor.
Onde queres comício, flipper vídeo, e onde queres romance, rock'n roll.
Onde queres a lua eu sou o sol, onde a pura natura, o inceticídeo.
E onde queres mistério eu sou a luz, onde queres um canto, o mundo inteiro.
Onde queres quaresma, fevereiro, e onde queres coqueiro eu sou obus.
O quereres e o estares sempre a fim do que em mim é de mim tão desigual.
Faz-me querer-te bem, querer-te mal, bem a ti, mal ao quereres assim.
Infinitivamente pessoal, e eu querendo querer-te sem ter fim.
E querendo te aprender o total do querer que há e do que não há em mim.
4 comentários:
não tenho palavras para me expressar agora, mas queria ser a primeira a comentar!!!rsrsrsrsrsrs
Bonito!
bjs
Simplesmente lindo, sincero, intenso, verdadeiro, apaixonanante, tocante, emocionante. Simplesmente Natali com um pouco de mim e delas.
O vinho é o personagem central de todas as coisas maravilhosas como retrata Baudelaire, somos amantes do vinho e por isso mando esse poema.
A alma do vinho
A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
"Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custa, na colina incendiada,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retinir a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo que os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!"
Dá até para ouvir o som das taças de vinho fazendo um brinde àquela noite... que seja infindável!
Postar um comentário