Dora e a Loba

As mãos secas tremiam ao pegar na peça. Todo o corpo de Dora tremia diante da sensação que a escultura lhe trazia. Algo de que ela se perdera há tempos lhe voltara nas lembranças sem que ela pudesse querer ou rejeitar. Ela retornara, e não seria a vontade de Dora que determinaria isso. Suas mãos a acariciar, tentando tirar a poeira que se acumulara, mal podiam suportar aquele peso que o bronze e o tempo infligiam, desafiando os músculos daquelas envelhecidas mãos. Depois de minutos ininterruptos olhando para a pequena réplica de uma loba saboreando o vento que lhe balançava os pelos, Dora chorou como não chorava desde a infância. A soluçar gritava como se estivesse sentindo uma dor corpórea, tamanha a dor que o passado lhe trazia. Era a mulher selvagem que lhe voltara cobrando todos os anos de omissão de vida. Era a loba que vinha e olhava com reprovação o que aquela mulher fizera de seus dias. De repente ela sentiu que abafara por muito tempo os clamores de sua alma, que rejeitou o que sua natureza lhe pedia, que se negou à dança de seu próprio ritmo, que omitiu sua natureza em prol de uma cultura que não lhe valorava. Ela havia se deixado de lado para construir um mundo que não lhe queria para além de uma operária do tédio. Paralisada no tempo, ela nada mais fez do que respirar, perdera a solidez da alma, a sabedoria do instinto de abandonar tudo o que não quer, passou a acreditar em um melhor que vinha de um raciocínio caduco, inventado por aqueles que são seu avesso opaco e autoritário, aqueles que inventaram uma razão tosca para manipular e conter espíritos como o de Dora, outrora livres e selvagens. Os seres invejosos que ditam valores e sugerem os bens aos quais as mulheres devem se apegar. Dora calou-se quando devia gritar, mutilando-se e tornando-se apenas uma metade.

Agora que por acidente reencontrara com o passado, ela chorou e gritou de dor, uma aguda dor, também necessária neste reencontro. Não foi porque sabia que estava sozinha que ela não conteve seus gemidos, mesmo se toda legião de marido, filhos, patrões e amigos estivessem ali ela urraria, pois a dor era profunda e fatal, não haveria como evitar, nem disfarçar. Agora aconteceu, e ela precisava sofrer, como em um parto, para nascer de novo. As lágrimas eram sua placenta e os gritos a dor da dilaceração, pois naquele instante desapercebido, o mesmo instante em que pessoas distraídas respiravam sem porquê, uma mulher renascia, e esse é um acontecimento muito maior que a explosão do nascer de uma estrela no céu.

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